segunda-feira, junho 27, 2011

Lá ao longe

O rio não é como uma música que se ouve muitas vezes. Lá ao longe, apesar de o reconhecermos e ser familiar, não se esgota nem nos esgota em milhares de dias que o contemplemos. Outro dia era um mar e o outro lado, nitido ao pormenor, era com se de outro continente se tratasse. A ponte com a sua alfândega, por certo, a outra margem ao alcance do olhar ainda que não acredite que as aves de aqui lá vão. No dia seguinte já o outro continente havia desaparecido numa neblina fantasmática luminosa, uma bruma de brilho como se o mar se evaporasse um pouco com o calor. A vontade de cruzar a fronteira para saber se a terra ainda estava lá. Teriam as aves ido lá espreitar?
O espaço que vai de mim a ti, quando nos encontramos, não é este rio. Mas tu, podias ser a outra margem. Uns dias visível, outros perceptível e ainda os outros, em que não se sabe se estás lá a não ser nos sonhos que entretiveram pontes e alfândegas.

terça-feira, junho 14, 2011

Esta noite há um eclipse total da lua e eu gostava de subir a uma torre ou a um terraço. Poder ver a luz a reaparecer no teu rosto. Em vez disso a burocracia e o economato queimam-me as pestanas, envelhecem-me a íris e mais alguma coisa de que não dou conta.

Vejo a minha geração e como gostava de identificar-me em vez de me sentir entre inimigos.

quarta-feira, maio 11, 2011

Garça

Hoje fui até ao rio. Pensava na graça da linha que a desenha do ombro até à nuca. A linha mais-que-perfeita. Tão bela quanto a sua argúcia. E na imensidão da água estendida sob os meus pensamentos ei-la que cruza o ar no meu olhar para vir, com o seu bico e patas negras, pousar na água, onde deslizou e outras vezes caminhou, com o seu corpo de ave esculpida indiferente à cidade nas suas costas. Indiferente aos horrores da terra, recortando o ar na sua brancura, como o meu gato negro o faz ao contrário, chamando-me para o paraíso possível. Entrevisto, adivinhado. Este pássaro vem misturar-se nos meus desejos.

sexta-feira, abril 15, 2011

Abril com pássaros

Na primeira vez pousou no passeio, de costas para nós, esticou as asas. Ficámos em silêncio. Uma imagem de sonho no intervalo da cidade ali junto ao rio. Abanou a cabeça grácil o pescoço esguio a trança leve. As patas tão compridas, estranhas a estas paragens de pardais. Deve ser a deusa das aves. Ignorou-nos dentro do carro a espreitá-la, as palavras e a respiração suspensa. Lenta e delicada mergulhou o bico longo no lago artificial e do mesmo modo trouxe para fora da água um peixe que brilhou por segundos à luz do sol do meio do dia e escorregou, como se tudo tivesse sido combinado e encenado, como se estivesse à espera dela desde sempre para ser levado na barrida da ave branca que, sem um sobressalto, levantou voo, da mesma forma elegante como tinha pousado. Esta imagem, como uma visitação, manteve-se viva, aparecendo subterrânea em sonhos ou desejos, até à semana passada, num dia em que a Garça Branca atravessou os campos do aeroporto, o calor inóspito do nosso ruído, só para cruzar o caminho que eu fazia em direcção a uma outra graça.

sábado, março 05, 2011

As árvores têm de ser centenárias, ou caminhar para lá. Frondosas. Tem de ser uma floresta o que nos espera. A cidade, aqui, serve-nos de preparativo. Reunimos mantimentos, coragem e tempo perdido. Tem passado tão rápido que este ano houve andornhas que não regressaram não chegaram a partir.

terça-feira, novembro 02, 2010

o regresso às Estações

Edviges partiu para um dos seus reinos. Deixou-me a casa empanturrada. De doces, compotas, pedras, sementes, papéis de toda a espécie, preciso de mil anos para encontrar os meus papéis se não pegar fogo a tudo. Quer dizer que serão precisos mil anos para recomeçar o meu trabalho se não for tudo a eito. Encontrar o fio da meada. Reecontrei uma tranquilidade perdida, pode ser o fio condutor até ao Tempo Perdido e Reecontrado. Reelaborado.

quarta-feira, maio 19, 2010

o sol abraça-te

A aranha morreu mas surgiram outras no seu lugar e como ela tiveram o mesmo fim. Podem ter emigrado tão perigosas e imprevisíveis se tornaram estas terras. Sobrevivi ao Inverno graças a Edviges. Perdeu-se quase tudo o que tinhamos na terra. Mas há esperança para alguns caules secos que possam guardar o segredo da ressureição por onde corre ou correu a sua seiva.
É dificil regressar a um discurso, regressar ao texto. Apesar da sua ausência ser ou sugerir-nos a morte. Não vale a pena escrever contra o esquecimento que ele sobrevirá. Vale a pena escrever para que os nossos dias se arrumem, para que o nosso tempo seja nosso, para que saibamos regressar ao que nos trouxe aqui, ao que me levou a Edviges.

quinta-feira, dezembro 24, 2009

O último mês

Ainda há romãs. As folhas da árvore sagrada foram mudando de cor até às superfícies da emoção. Os temporais estão a fazê-las cair, andámos a colectar algumas já podres do chão, há uma teimosia diferente este ano nesta árvore . Resistem para lá do seu tempo as folhas, os frutos foram em demasia, deram para os pássaros, para nós, para as formigas, para doces de inverno, e ainda ali estão alguns, secos, impedindo a árvore de se calar.
A figueira do lado foi cortada, grandes chuvadas fizeram-na tombar e acabou levada cerrada depois de tantas estações, depois de resistir a tanto ódio humano. As árvores são maiores que nós, ultrapassam-nos em tempo, em utilidade também na maioria das vezes. Mas não viemos aqui falar do que é útil. Nem estamos perto de saber o que isso significa.

sexta-feira, outubro 30, 2009

11º mês

Tâmaras frescas, a primeira romã, um brinco perdido. A dificuldade em ser razoável. O frio de que tenho saudades, o nevoeiro que me acompanha na manhã e faz esquecer a força bruta que tenho de arrancar-me para fazer a manhã continuar. O nevoeiro que esquece os músculos arrancados das costas.
O reino de Edviges parece seguro depois da diplomacia entre a guerra. Parece, por vezes, que não existe outra possivel, que fora da guerra e da morte não há acordo ou compromisso a que possamos chegar. Esta é uma estação de luz e sombra, quero passar por ela sem que se aperceba. Aprendi que o cansaço vai do despontar do sorriso até aos olhos matando a coragem ou a vida que por eles vi(vi)a.