quarta-feira, novembro 26, 2003

O imperador hoje falou. Atrás dele duas barras vermelhas e uma branca, a lembrar os cenários das feiras por trás dos bonecos a quem se atiram tartes. Os gnr`s descobriram que ganham pior que os carabinneris, sempre se podem recusar aos serviços mais lixados.

em baixo, ainda, Ramos Rosa

terça-feira, novembro 25, 2003

O chão por onde ando é aparentemente tranquilo
mas eu ando nele como se estivesse minado
porque não ando só nele
mas através do tempo que não posso prever
e que no seu vazio ou nas suas figuras me arrepia me enerva ou
[me confunde
Por isso eu desejaria estar num quarto de uma delicadeza chinesa
e ver através de uma vidraça uma árvore de folhas minúsculas
e não ouvir mais do que o murmúrio de uma abelha
só assim eu poderia viajar na imobilidade pura
transpondo-me para uma região estática como um ovo
onde atingiria o equilíbrio da coincidência subtil
Tudo estaria suspenso em perfeita integridade
como se eu tivesse entrado no ouvido brando de um cisne
e viajasse por dourados campos por sossegadas veias
de veludo Veria as formas puras do silêncio
e a larga flor do ócio perfumando o meu estar tranquilo

sexta-feira, novembro 07, 2003

A fatalidade consiste
em não depender de nós não desesperar
embora possamos às vezes fazer o gesto necessário
para sairmos de uma sombra asfixiante
Outras vezes o dia amanhece como um barco de vidro
e a transparência aligeira-nos os músculos e as veias
O inesperado surge com a leveza do que já nem sonhávamos
e de novo podemos erguer a coluna da delicada confiança
ou projectar no dia a diagonal do desejo de ser
o que não poderíamos ser mas que seremos ainda que não sendo
(...)

António Ramos Rosa
Morremos por estarmos a mais
e estar a mais é ir morrendo em cada dia
Estar a mais é não ser o que se é ou não poder ser
e ser a hesitação de quem perdeu o rumo
e gira em torno da sua própria ausência

Mas ninguém comete o erro de não ser quem é
porque a sua identidade é o limite instransponível
de uma consciência e por mais que se extravie
está sempre no seu círculo irregovável

Assim o homem é quem é e quem não é
e entre estes contrários a tensão é insustentável
o que faz exceder-se e ser a mais

Ele terá sentido alguma vez que iria descobrir um tesouro
[oculto
e tê-lo-á procurado num armário ou atrás da porta
mas um violento jacto negro terá irrompido e ter-lhe-á cegado
[os olhos

António Ramos Rosa

terça-feira, novembro 04, 2003

ANTI-ÉCLOGA

A verdade é que também as urtigas
me aborrecem. Esta doçura dos pássaros,
a silvestre quietude da tarde atravessada
pelo balido das ovelhas, grandes imitadoras
de Edith Piaf, tudo isso não chega a ser
tão daninho como a luz de um semáforo
vermelho, mas um pouco de sangue
na biqueira do sapato faz-me falta.
Faz-me falta praguejar, ter um lago
de cimento onde cuspir, obstáculos
de fogo, fantasias, a metralha dos calinos.
Não me sinto nada bem com a doçura,
com a paz dos ermitérios, de onde Deus
se retirou há quinze anos. Esta resignação
das árvores, dos faunos, das silvanas,
da restante bicharada típica dos lugares
onde sofrer é natural como estar só,
a conclusão é que não sei caminhar sem sapatos
que me apertem. As sandálias do pescador,
as botas do alpinsta, não me levam
a lado nenhum. Detesto confessá-lo
mas eu sou cidade até à raíz do terror.

José Miguel Silva