quinta-feira, dezembro 24, 2009

O último mês

Ainda há romãs. As folhas da árvore sagrada foram mudando de cor até às superfícies da emoção. Os temporais estão a fazê-las cair, andámos a colectar algumas já podres do chão, há uma teimosia diferente este ano nesta árvore . Resistem para lá do seu tempo as folhas, os frutos foram em demasia, deram para os pássaros, para nós, para as formigas, para doces de inverno, e ainda ali estão alguns, secos, impedindo a árvore de se calar.
A figueira do lado foi cortada, grandes chuvadas fizeram-na tombar e acabou levada cerrada depois de tantas estações, depois de resistir a tanto ódio humano. As árvores são maiores que nós, ultrapassam-nos em tempo, em utilidade também na maioria das vezes. Mas não viemos aqui falar do que é útil. Nem estamos perto de saber o que isso significa.

sexta-feira, outubro 30, 2009

11º mês

Tâmaras frescas, a primeira romã, um brinco perdido. A dificuldade em ser razoável. O frio de que tenho saudades, o nevoeiro que me acompanha na manhã e faz esquecer a força bruta que tenho de arrancar-me para fazer a manhã continuar. O nevoeiro que esquece os músculos arrancados das costas.
O reino de Edviges parece seguro depois da diplomacia entre a guerra. Parece, por vezes, que não existe outra possivel, que fora da guerra e da morte não há acordo ou compromisso a que possamos chegar. Esta é uma estação de luz e sombra, quero passar por ela sem que se aperceba. Aprendi que o cansaço vai do despontar do sorriso até aos olhos matando a coragem ou a vida que por eles vi(vi)a.

quinta-feira, outubro 08, 2009

Outono

As chuvas chegaram e a aranha engorda junto à janela. Deixa-nos os seus cadáveres para eu limpar meticulosa e pacientemente todos os dias. Apesar do ritmo lento e inútil da nossa força de trabalho também engordamos. Enquanto as sementes e as flores se avolumam à nossa volta. Ainda não chegaram notícias das guerras travadas contra os territórios de Edviges. Sonho com livros e com o tempo que nunca terei para eles. Uma vaga de melancolia amarela cobre-me a pele, uma espécie de tortura com brasas encandescentes.

domingo, setembro 27, 2009

Edviges deixou o seu reino desprotegido. Para vir ter connosco. Os ataques começaram por vários lados, mas Edviges não abandonou o nosso amor. Tudo parece sereno e seguro apesar de neste sítio, sobranceiro ao mar, termos aprendido a eminência da catástrofe. Não sabemos se ela vem connosco do princípio dos tempos, se ela está em todas as pedras ou se ela luta, como Edviges faz agora, para subsistir. É uma princesa de paz, todos os súbditos sorriem. Faço-a sorrir com beijos.

quinta-feira, agosto 06, 2009

Continuamos com os pássaros. Às vezes nem vamos ter com eles mas eles estão lá, escolhemos os mesmos sítios, sinal da nossa condição animal conjunta. Só a nós não nos couberam asas. Em vez delas os olhos, intermediários da lagoa e do seu espelho cá dentro. E à frente dos olhos podemos pôr instrumentos que os projectam para lá do horizonte nú. O mundo aparece-nos de maneira tão diferente, é possível abarcá-lo de maneira tão diferente que não compreendo como há gente que se aborrece. E desiste, por vezes.

domingo, julho 05, 2009

Julho com pássaros

Os pássaros estão sempre connosco, também. Dentro das muralhas, no topo da torre e lá fora, à volta do castelo. Saio, fecho os olhos, sinto pela frescura do vento e pelo calor na pele que o sol está alto. O céu está alto também, há muito espaço entre nós e ele. Azul, claro, luminoso sem ferir como acontece depois em Agosto. Contra o espelho de calcário dessa altura as nossas pupilas nada podem.
Mas, agora, o silêncio. A cidade está feita de silêncio. Redondo, alto como o sol deste domingo. O domingo mais silencioso e azul da época. Amanhã as rotinas põem-se em marcha, como roldanas, mas hão-de estar mais soltas porque já um terço da população se exilou para destino balneares.
Os mistérios de Lisboa ficam mais à vista.

sábado, junho 20, 2009

Verão Quente

Organizamos a colecção de árvores. Como os dias se alongam agora mais os planos são maiores. Envio cartas pedindo músicas de que precisamos. Elas chegam, devagar, de cantos longínquos. Fica sempre tanta por chegar, como os mapas de que precisariamos para decifrar os novos mundos desconhecidos. Ou os fazemos de raíz arriscando o naufrágio ou tentamos copiá-los, roubá-los arriscando a honra e a pena capital.

sexta-feira, maio 08, 2009

Veio o calor e as formigas. Edviges vinha várias vezes no seu pequeno bote carregado de mantimentos. Já não tinhamos o cerco junto às muralhas reparadas há dois invernos atrás. A crise continuava mas parecia longe, vinha nas notícias de jornais atrasados que encontrávamos, por vezes.

quinta-feira, abril 30, 2009

Procuramos o sabor, a forma, a memória primacial. No alho, na flor nova que desponta, na casca da laranja arrancada ao fruto. Procurar assim a manhã (o orvalho?)ocupa todo o ser. O tempo continua a escoar-se apesar da nossa vontade em habitá-lo no presente de forma inteira. Como dizia Sophia.

segunda-feira, março 30, 2009

Ela é livre. E há, nas pessoas livres, o apuro da sensibilidade. Uma pele mais fina. Contrapartidas. Pediu-me para escrever as nossas histórias. Se o verde desponta em cada ramo mais depressa que o nosso respirar como conseguir registar por palavras o que se quer a todo o custo viver (salvar).
Tive saudades da montanha. Sei que lá estaríamos a salvo da voragem das estações.

segunda-feira, março 16, 2009

Nós e em mim o mesmo espanto. Lança os dedos longos sobre a linha e a agulha vai e vem como se esse movimento já estivesse à espera das mãos que o tornam visível. Edviges respira e eu espanto-me. Queria ficar a olhá-la e às mãos e à agulha muito mais tempo que todos os tecidos por cozer ou cerzir me concedessem. Em mim o espanto e nada mais mexe. Nela a voz doce e mil histórias enquanto as mãos dançam nesse movimento que nos precede, que existe para além de nós e que me traz, em suspensão, irrevogável em face dela.

quarta-feira, fevereiro 25, 2009

Passámos para a outra margem debaixo da luz ofuscante. Levámos connosco a fábula pequena que acordou, como eu fazia em criança, em correrias, junto aos canais e aos pássaros e ao sol. Vimos a primeira andorinha a primeira papoila. Suspendemos por momentos o ocaso do dia. E ele veio quase doce. Edviges é uma princesa e eu, aqui no estaleiro do porto. As mãos a ficar rijas.

quinta-feira, janeiro 22, 2009

Ajoelhei-me, inclinei a cabeça para a frente e ela lavou-me, delicada e demoradamente o cabelo. E o cabelo é para mim o princípio do mundo e das suas incertezas. Esperou-me, depois, enquanto me fui despedir de um pedaço de mim, levado para sempre numa caixa de chumbo. Pode o silêncio da pedra ser derrotado com o nosso amor?