sexta-feira, janeiro 13, 2006

Não sei quando foi que começei a levar a vida a sério.
A lua está alta, cheia e indiscreta. Amanhã estará por cima das telhas do meu prédio e fará sombras novas nos quintais. É isso o tempo. Também. Suponho.

segunda-feira, dezembro 26, 2005

Lembrar

Descobri o sítio onde comemos bifanas na noite do velório. Aquele sabor ficou por muito tempo associado ao cheiro da capela. Ainda me lembro do sabor da mostarda no momento em que tentava despedir-me diante do cadáver. A sua morte súbita era um acidente. Éramos demasiado jovens para que fosse mais do que isso.

quinta-feira, dezembro 22, 2005

no meio

A minha casa tem dois lados. Como o coração e a cabeça. De um lado faz sol do outro sombra. De um lado o céu do outro os prédios. De um lado o silêncio do outro os carros. De um lado um vestígio de outros tempos do outro o Tejo. De um lado as árvores do outro o vento. Como eu não posso viver no meio da casa vou ter de encontrar outra.

quarta-feira, dezembro 14, 2005

As árvores lá trás

A figueira ficou nua depois da tempestade. Foram-se as folhas já amarelecidas pelas primeiras chuvas. Mas, ao lado, as tangerinas ficaram cheias e a rebentar de cor.

domingo, novembro 20, 2005

Fim

Não parou de chover. Desde há 10 anos. Quando chove assim é a sério. Não há nada que se suspenda, acontece.

sexta-feira, novembro 11, 2005

do desamor

Ambos lutavam contra o seu destino. Ele, tinha construído durante toda a juventude um tese sobre o Bem e convencia-se, a ele e aos outros, que pô-la em prática era o seu lema diário. Ela, queria convencer-se a não ser a queca intermédia, de consolação, a não ser a amante de alguém, queria apaixonar-se, queria convencer-se de que era outra, com uma auto-estima aceitável. Ambos lutavam contra o seu destino.
Irremediavelmente.
Se ele não andasse a construir patranhas sobre a moral e o bem talvez pudesse não abusar da falta de amor próprio da rapariga. Se ela recuperasse algum desse amor talvez conseguisse que ele se apaixonasse por si.
Tanto por acontecer num subúrbio próximo de si.

segunda-feira, outubro 03, 2005

não nos precipitemos

Os Castros chegaram com as camionetas cheias de fios, cabos e as lâmpadas. Hoje vi uma senhora a vender castanhas. As lojas dos trezentos ou do preço certo têm as montras cheias de roupas de pai-natal e bolas para a árvore. Há um calor luminoso em Lisboa e isto deve confundir as composições de português dos meninos na escola.

terça-feira, agosto 30, 2005

do amor

O amor devia fazer-nos pessoas melhores e devia aproximar-nos da nossa verdade, estarmos mais próximos de nós, de quem somos. Disse-lhe isto em Bloomsbury Street, ele sorriu acatando, disse-me adeus e que não andasse de metro nos próximos tempos.

sexta-feira, julho 29, 2005

never ending story

uma torneira avariada, depois uma fuga de gás, depois o pedreiro, o mijo do cão do vizinho nos sítios inesperados, depois marcar as análises, as ecografias, tentar aquela especialidade médica, esperar em listas de espera, nova torneira avariada, uma invasão de formigas, entregar papéis em repartições, ir buscar papéis a repartições, ter de chatear pessoas em repartições, passar as mãos por água fria quando está calor. E se estes gestos, se moralizados, fossem uma cavalgada da vida contra a morte?

sexta-feira, julho 15, 2005

E disse-me peça tudo a Jesus que ele dá

Hoje uma senhora de alguma idade, um rosto muito belo, espalhou fotografias suas de quando era muito jovem, sobre o balcão para que desconhecidos como nós as vissem. Os olhos e a pele brilhavam como numa criança. Tirava foto a foto do saco de plástico sem parar, sofregamente, apesar dos seus gestos e olhar doces.Talvez não estivesse a mostrar-nos as suas fotos, mas estivesse a pedir-nos que confirmássemos, com ela, ter havido outro tempo, não podia ser agora uma mulher com um casaco de malha em vez do vestido comprido de estrela de cinema. A pedir-nos que não a deixássemos morrer.